Mais sobre a Aprovação do Projeto do Azeredo


Duas coisas me indignam na aprovação do substitutivo do Senador Azeredo pelo Senado Federal, ontem à noite. A primeira delas é a ficção de que este é um projeto que visa combater a "pedofilia na Internet". Isso porque a pedofilia, enquanto conduta, não acontece na Internet, acontece na vida offline. O que a Internet faz é proporcionar que os pedófilos e a indústria da pornografia consigam espalhar mais facilmente as informações do seu interesse (divulgação de pornografia infantil, outra conduta). Com isso, a Internet deixa visível um crime que, até então, era silencioso.

O problema do combate à pedofilia, em termos jurídicos, não é a "pedofilia virtual". É o fato de que a pedofilia não é tipificada como crime específico no Código Penal Brasileito. O crime é julgado por analogia, como "atentado violento ao pudor" (art. 214) ou "estupro" (art.213). Isso quer dizer que o enquadramento criminal é variado e, por conseqüência, as penas também. Além disso, a pedofilia é um transtorno sexual, do grupo das chamadas parafilias e é um transtorno com alta taxa de reincidência, caracterizado por comportamentos obsessivos. Por conta disso, os médicos divergem a respeito da "culpabilidade" dos indivíduos acometidos por esse tipo de transtorno, considerando-os, muitas vezes, inimputáveis (sem capacidade de entender o caráter criminoso de suas ações) ou semi-imputáveis (com capacidade parcial). Se assim forem considerados, esses indivíduos não são passíveis de pena, mas de medida de segurança (considerados assim, com reduzida ou sem responsabilidade penal).

Assim, o combate é focado na produção de material pornográfico infantil. Neste sentido, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é utilizado de forma específica, em seu artigo 241, para o combate à divulgação de material pornográfico infantil na Rede. O que é justo, pois trata-se de uma prática social execrável, na minha opinião. No entanto, contra a divulgação de material pornográfico, o substitutivo propõe apenas uma pequena mudança, no ECA, no art. 241. Vejam a mudança:

Versão atual: Art. 241. Apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente
Versão do Azeredo:
Art. 241. Apresentar, produzir, vender, receptar, fornecer, divulgar, publicar ou armazenar consigo, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou Internet, fotografias, imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente
A diferença, microscópica, é simplesmente que a redação do substitutivo inclui "receptar" e "armazenar". Reparem, assim, que o ECA já prevê mecanismos de combate à divulgação da pornografia infantil há milênios (desde 2003). O argumento dos senadores é, na verdade, que os dispositivos seguintes do substitutivo, que prevêem a gravação dos dados da conexão de todos os usuários é que vão permitir o combate à divulgação desse tipo de material, pois vão obrigar os provedores a gravar e fornecer dados da navegação de seus clientes.

Essa proposta, no entanto, é inficaz para o fim que pretende. Primeiro porque ela apenas identifica a máquina utilizada e não quem estava por trás dela. Segundo, os "ciber" criminosos utilizarão (se já não o fazem) computadores públicos e cibercafés onde não poderão ser identificados. Assim que a única maneira que se tem de verificar esse tipo de coisa é olhando os dados que estão sendo trocados e exigindo que dados que pessoalizem as condutas (acesso a email, msn e etc.) sejam armazenados e exigindo a identificação de cada computador para um "responsável", o que vai gerar uma política de vigilância absurda sobre toda uma população (que é mais ou menos a idéia do governo Bush nos EUA). Mas esta é outra discussão.

A idéia do projeto do Azeredo não é, assim, combater a pedofilia. Tanto que não acrescenta um novo tipo penal na parte em que solicita o acréscimo de artigos ao CPB. Ao contrário, ao invés de solicitar que a pedofilia seja tipificada, ele solicita que o sejam as condutas de "acessar sistemas de computadores de forma não autorizada" ou "transferir dados não autorizados" (como já discuti antes).

E isso me leva ao segundo ponto é que o fato de que os crimes cometidos pela Internet enumerados pelo substitutivo, em sua maioria, já são tipificados pelo Código Penal Brasileiro. Estelionato, furto, dano e etc. já constam lá. O que o substitutivo prevê são nosas redações para os artigos, ampliando os tipos e complicando sua aplicação. As grandes novidades do projeto são, justamente, aquilo que estamos discutindo na blogosfera: a criminalização de condutas amplas, dentro das quais quase qualquer ação do internauta comum poderá ser enquadrada. Não é possível ao legislador oferecer "garantias" ao internauta "bonzinho" que seu comportamento não será enquadrado na nova lei. Se alguém resolver processar você por alguma ação sua na Internet e se a lei der margem para essa interpretação, mesmo que irrazoável, o juiz poderá decidir pela sua condenação. E, a meu ver, é este o problema.

A discussão a respeito da pedofilia (como se o projeto fosse sobre isso) simplesmente tira o foco dos problemas de redação do substitutivo, que estão, justamente, na tipificação criminal de condutas amplas demais. Minha insatisfação é justamente essa: o projeto do Azeredo, se aprovado for no Congresso (e reparem que agora ele apenas pode ser aprovado ou não, não mais pode ser modificado), coloca-nos todos no mesmo saco, passíveis de processos criminais por condutas que jamais imaginamos que seriam consideradas criminosas. E, marquem minhas palavras, serão.

Update: Parte das argumentações relacionadas pelos veículos de divulgação da aprovação foram, na verdade, proferidas na aprovação de um outro projeto, que também foi votado ontem. Apesar disso, mantenho o post por conta das diversas declarações de que seria esta seria uma das forças do substitutivo em questão.