AVATARES - VIAJANTES ENTRE MUNDOS

Raquel da Cunha Recuero

Artigo apresentado como requisito final à aprovação na disciplina de Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação , ministrada pela profa. Dra.Marília Levacov em julho de 2000, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação.

RESUMO: Este trabalho destina-se a fazer uma breve introdução e levantar algumas questões pertinentes aos chamados "habitats" ou ambientes gráficos de conversação na Internet, tanto em duas dimensões (2D), como em três dimensões (3D).

PALAVRAS-CHAVES: Chats, comunidades virtuais, avatares, active worlds, the palace, MUDs, MOO, realidade imersiva.

 

 

A EVOLUÇÃO DOS CHATS

O chat é uma das formas de interação proporcionada pela Internet. São sistemas de comunicação em geral síncronos, que permitem que um ou mais pessoas "conversem" textualmente com outras pessoas. Diretamente relacionados com a comunicação interpessoal e com os relacionamentos, os chats evoluíram de acordo com os computadores pessoais.

No início, os chats eram puramente textuais. A maioria deles resumia-se a talks, ou seja, linhas de comunicação escrita entre apenas duas pessoas, sob a forma de envio e recebimento de mensagens simultâneas. Aos poucos, o chat evoluiu para um ambiente multi-usuário, ou seja, onde vários podiam conversar com vários. Dentro destes ambientes multi-usuários, surgiu o MUD (Multiple User Dungeon ou Multiple User Dimension), um programa de computador onde os usuários poderiam, além de enviar e receber mensagens em tempo real (ou quase real)[1], explorar uma realidade que era construída textualmente, ou seja, um "mundo" virtual fantasioso criado por outro usuários.

Os MUDs surgiram também dos jogos de RPG (Role Playing Game)[2], onde os jogadores representam papéis, e dentro de seus personagens, interagem em um ambiente "virtual" criado pelo mestre, ou o jogador que coordena as atividades[3]. O MUD permitia que toda esta atividade fosse feita online. O usuário controla um personagem, anda pelo ambiente, interage com os demais, resolve enigmas, e pode até mesmo criar suas próprias salas, descrições e itens. O MUD, no entanto, é baseado unicamente no texto escrito.

Dos MUDs derivaram outros dois sistemas semelhantes, o MOO e o MUSH. Estes ambientes, também textuais, eram mais direcionados ao chat e menos ao jogo, apesar de também lidarem com elementos como personagem e realidades diferentes.

Com o surgimento da linguagem VRML, criada por Mark Pesce, permitiu a construção de ambientes virtuais, em três dimensões, onde o usuário poderia "caminhar" livremente, pode ser realizada[4]. O mundo VRML, no entanto, necessitava de muito poder de processamento dos computadores, o que acabou inviabilizando este tipo de plataforma para os usuários comuns. Logo surgiram ambientes de imersão mais simplificados, em apenas duas dimensões, onde o usuário podia simplesmente, através de um programa cliente, visitar um mundo gráfico onde poderia conversar com outras pessoas. É o advento do GMUK (Graphic Multiple User Conversation), também chamado "habitat", termo cunhado por Randy Farmer (SULER, 1999).

Como exemplos destes dois tipos de ambientes GMKU (2D e 3D), temos o The Palace, um dos softwares de conversação 2D mais populares da Internet, e o Active Worlds , um dos softwares mais populares em 3D. Para interagir dentro destes ambientes é preciso ter uma aparência física, ou ainda, mergulhar em um avatar.

 

AVATARES- VIAJANTES ENTRE OS MUNDOS

O termo avatara significa, dentro da literatura hindu, descendente, especialmente de um deus do céu ou da terra. Pode ser também compreendido como uma encarnação, e é distinta de uma emanação divina, sendo ambas associadas com Visnu ou Siva, deuses da religião hindu. "O conceito de avatara é provavelmente um desenvolvimento do mito antigo de que, através do poder criador de Maya, um deus poderia assumir qualquer forma..." (VESNA, 2000)

O avatar é, portanto, um viajante de mundos, alguém que pode viver em várias realidades. Daí vem o termo utilizado para definir os usuários em ambientes de chat gráficos. Isso porque estes softwares permitem que vários "mundos virtuais" diferentes, com propostas e interfaces diferentes, sejam criados. O usuário pode então, através de seu avatar, viajar entre eles, vivendo em várias realidades diferenciadas. Para alguns autores, o termo designa uma "identidade assumida no ciberespaço" (VESNA, 2000). Entretanto, consideramos esta idéia problemática, como iremos explicar no decorrer deste trabalho. Portanto, utilizaremos apenas a acepção técnica da palavra, de viajante entre os mundos, para designar o usuário que utiliza-se de um "corpo" gráfico para interagir nos GMUK.

O avatar é portanto, composto de dois elementos: um elemento referente ao software ( o corpo gráfico criado ou utilizado pelo usuário para representá-lo no ambiente de conversação virtual) e um elemento humano (o próprio usuário que interage através do corpo gráfico). No avatar tem-se, assim, um complexo conjunto de nuances humanas e maquínicas, que representam uma identidade virtual, que pode ou não ser assumida. Essa identidade assumida só o é na medida em que o usuário conectar-se num mesmo ambiente com uma mesma representação, e que seja reconhecido pelos demais usuários. Se o usuário utiliza-se de diversas representações, ele não assume uma identidade, mas em nosso entendimento, procura esconder-se dentro do anonimato relativo [5] que esses chats proporcionam. O mesmo acontece com os usuários novatos que utilizam-se de uma representação padrão. Esta seria outra razão pela qual os novatos não são muito bem vistos pelos demais.

 

OS AMBIENTES DE INTERAÇÃO

Basicamente, para este trabalho, estudamos dois ambientes de conversação gráficos, um que utiliza-se de um ambiente gráfico 2D (The Palace) e um que utiliza-se de um ambiente gráfico 3D (Active Worlds).

  1. The Palace
  2. Existem duas formas de utilizar-se o The Palace. Uma é com um software cliente chamado software de visitação, que permite que o usuário conheça os ambientes, participe de conversar, mas que tenha apenas uma representação gráfica, ou seja, o usuário não pode construir uma representação diferenciada para si, sendo obrigado a utilizar a padrão. Esta é constituída de uma esfera com olhos e boca (um smiley), que pode representar várias emoções, como alegria (sorriso), fúria etc. Esta imagem é normalmente associada com os newbies, ou seja, novatos, e não é muito bem vista pelos demais participantes, pois demonstra que ou o usuário não sabe como construir sua própria representação ou que ele não deseja fazê-lo. (SULER, 1999; VESNA, 2000) A construção de uma representação gráfica única por parte de um usuário em geral está relacionada com o ato de assumir uma identidade virtual. Isso porque uma vez que os atos e expressões do usuário, bem como seu nickname (apelido) forem relacionados com a forma gráfica, este poderá ser reconhecido quando retornar ao ambiente, o que proporcionará o estabelecimento de laços sociais que poderão levar à formação de comunidades.

    A segunda forma é através de um software cliente, que é pago e registrado, que permite ao usuário que construa sua representação gráfica no ambiente.

    Uma vez conectado ao servidor do The Palace, o usuário escolhe a sua representação gráfica e o ambiente em que deseja entrar. Dentro de um ambiente, ou mundo virtual, existem várias salas interconectadas onde o avatar pode entrar. Um dos ambientes mais conhecidos do The Palace é o "Main Mansion", ou "Main", que contém mais de 30 quartos, incluindo quartos de dormir, bar, sala de jogos, praia, e diversos ambientes surrealísticos. Como nos chats, o usuário comunica-se com os demais através de texto digitado no teclado, que aparece para os demais sob a forma gráfica de um balão, como se a figura estivesse em uma história em quadrinhos. Aliás, esta é uma das características mais marcantes do software. Ele possui toda uma interface de história em quadrinhos, com personagens que podem aparecer como humanos caricatos, celebridades conhecidas, animais etc. e expressões cuja representação gráfica dá-se através de balões.

     

  3. Active Worlds

O Active Worlds é um software de GMUK que permite que os usuários utilizem o chat dentro de um ambiente em três dimensões [6], onde o avatar pode explorar, "caminhando" dentro do mundo virtual. No Active Worlds, os avatares são representados unicamente por pessoas, com forma humana. Além disso, o software permite que um usuário construa seu próprio mundo, podendo coordená-lo. Os outros usuários podem construir suas "casas" dentro deste mundo, alterando-o dentro das regras especificadas pelo coordenador e possibilitando também a construção de comunidades entre os usuários deste mundo.

No Active Worlds, há também duas formas de utilizar o software. Uma como usuário registrado, onde existe a possibilidade de construção de sua representação dentro do ambiente que seja única e característica, ou como usuário não registrado, ou turista, que possui uma única representação padrão, um ser humano com uma máquina fotográfica no pescoço e óculos escuros.

O avatar pode movimentar-se livremente dentro dos vários mundos, encontrando outros avatares. Para falar com alguém, ele deve digitar em uma janela para este fim, que será representada para os demais sobre a cabeça do avatar. Além disso, é possível ao usuário estar "dentro" do avatar, ou seja, imergir verdadeiramente no ambiente, em primeira pessoa, ou vê-lo de fora, como terceira pessoa. O avatar pode agir dentro de determinadas formas pré-concebidas pelo programa, como dançar, acenar, sorrir etc. Limitações físicas também podem ser transcendidas, uma vez que o avatar pode elevar-se sobre o solo (levitar) e movimentar-se no ar. O usuário tem ainda a opção de olhar para cima e para baixo.

No Active Worlds, existem também representações gráficas para os "portais", ou seja, locais onde o avatar pode mudar de mundo.

 

AS COMUNIDADES VIRTUAIS

Quando um usuário assume uma identidade, ele passa a ser reconhecido pelos demais. Com isso, as interações passam a ser estabelecidas de forma mais forte entre vários usuários em um mesmo local do ciberespaço, tornando-se relações sociais. Dentro de um certo período de tempo em que essas relações estabeleçam-se, tornam-se laços, e logo, aquele grupo de pessoas que costuma reunir-se num determinado local do ciberespaço passa a constituir uma comunidade virtual[7]. Dividindo interesses, um locus não-geográfico, um período de tempo (HAMMAN, 1998), essas pessoas utilizam-se da Internet e dos GMUKs para constituírem uma das funções mais elementares do ser humano: a inserção num meio social, por parte de sua necessidade gregária.

Estas comunidades muito freqüentemente constituem websites para demonstrar sua existência e trocam experiências com outras comunidades. Estas comunidades mantêm vivo um dos pontos mais fundamentais do presente e do futuro do ciberespaço e da Internet: o senso comunitário.

Dentro dos GMUKs, essas comunidades caracterizam-se por costumarem reunir-se em determinados ambientes, onde encontram aqueles avatares já conhecidos. No caso do Active Worlds, são pessoas que costumam visitar determinados mundos ou construir suas casas neles. No caso do The Palace, são simplesmente pessoas que encontram-se em um determinado ambiente do qual gostam mais[8].

 

A REALIDADE IMERSIVA, GMUKs E COMUNIDADES

Um dos pontos de maior controvérsia e temor das pessoas é que o surgimento destes ambientes virtuais imersivos venha a substituir a realidade como a conhecemos, levando as pessoas a viver numa gigantesca "Matrix"[9]. Não estamos dispondo-nos aqui a fazer este tipo de discussão futurista. Não sabemos quais os tipos de interação que a Internet poderá vir a proporcionar. O que interessa, neste ponto, é compreender como a interação entre as pessoas pode ser facilitada através de um ambiente lúdico, como é o caso dos GMUKs e seus avatares. Através dessas ferramentas comunicativas, as pessoas podem interagir. E através desta interação podem formar comunidades, dividir conhecimentos e adquirir informações. A tecnologia é criada para auxiliar, para que o homem alcance seus sonhos. Se o uso que é feito desta tecnologia não é o mais apropriado, não significa necessariamente que esta ferramenta seja má. O avatar é um meio de comunicar idéias, muitas vezes complexas. O GMUK é, no mínimo, uma ferramenta de comunicação. Através dele, a tecnologia permite a comunicação de muitos para muitos (FARMER, MORNINGSTAR, CROCKFORD, 2000), de forma massiva e interativa (PALACIOS, 1998), como é característica da Internet (e portanto, uma novidade no meio da comunicação, uma vez que nunca haviam sido conjugadas essas duas propriedades da comunicação em um único meio antes), e que se dá de uma maneira lúdica e agradável entre os participantes. Mais do que isso, os GMUKs permitem uma reinterpretação do conceito de comunidade, desta vez sem o pressuposto geográfico, mantendo vivo um sentimento comunitário que é parte do homem e das sociedades humanas desde o início da própria humanidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BROLL, W. MEIER, E. SCHARDT, T. Symbolic Avatar Acting in Shared Virtual Environments <http://www.dfki.de/imedia/workshops/i3-spring99/w4-final/broll.html > (29/06/00)

FARMER, R. MORNINGSTAR, C. CROCKFORD, D. From Habitat to Global Cyberspace. < http://www.communities.com/paper/hab2cybr.html > (29/06/00)

HAMMAN, R. Introduction to Virtual Communities Research and Cybersociology Magazine Issue Two.< http://members.aol.com/Cybersoc/is2intro.html> (06/10/1998).

PALACIOS, Marcos. Cotidiano e Sociabilidade no Cyberespaço: Apontamentos para Discussão. < http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/palacios/cotidiano.html > (19/11/1198)

RHEINGOLD, Howard. La Comunidad Virtual. Una sociedad sin fronteras. Colección Limites de La Ciencia. Gedisa Editorial. Espanha. 1996.

SULER, J. The Psychology of Avatars and Graphical Space in Multimedia Chat Communities. Or How I Learned to Stop Worring and Love My Palace Props. <http://www.rider.edu/users/suler/psycyber/psyav.html> (29/06/00)

TURKLE, Sherry. Life on the Screen: Identity in the Age of Internet. New York: Touchstone, 1997.

_______________. The Second Self. Computers and the Human Spirit. Touchstone: New York, 1984.

VESNA, V. Incorporated Avatars: Organisational Contradictions in Cyberspace.

<http://vv.arts.ucla.edu/publications/publictions/html/INCcorporated_avatars.htm> (29/06/00)

 

NOTAS:

[1] Quase real porque muitas vezes pode ocorrer uma disfunção no envio e recebimento dos pacotes que contêm a mensagem devido ao congestionamento da Rede. É o chamado lag, ou atraso.

[2] Em geral, Dungeons&Dragons (D&D). A idéia era popularizar o jogo e deixá-lo mais complexo.

[3] Este jogo pode ser realizado de muitas maneiras, principalmente, de modo oral. O mestre descreve o ambiente e os jogadores descrevem suas atitudes e sua aparência para os demais. Ãs vezes acontece o live, ou seja, momento em que os jogadores representam aquilo que estão fazendo, interagindo como se fossem os personagens no ambiente fictício criado pelo mestre.

[4] A idéia de "imersão" em um ambiente virtual era parte da visão descrita por Neil Stevensons na novela cyber punk "Snow Crash".

[5] SULER, 1999. Segundo ele, o anonimato proporcionado pelos GMUKs é muito diferente daquele proporcionado pelos chats puramente textuais, onde unicamente o apelido demonstra a identidade. Num GMUK, também há uma "fantasia", uma representação gráfica que demonstra, ainda que de forma implícita, alguma faceta da personalidade do usuário.

[6] Construído através da linguagem VRML, que possibilita que se acrescente texturas e que o usuário movimente-se através do teclado, como um jogo.

[7] O termo "comunidade virtual" foi utilizado pela primeira vez por Howard Reinghold em seu livro "Comunidade Virtual".

[8] Existem várias explicações para o surgimento do fenômeno no ciberespaço. Uma das que nos parece mais pertinente foi utilizada por HAMMAN (1998), a respeito de uma proposição de Ray Oldenburg. Segundo Oldenburg, as sociedades humanas seriam constituídas basicamente de três lugares fundamentais: os primeiros, os lares, onde as relações familiares são importantes; os segundos, os locais de trabalho, onde efetivam-se relações profissionais, e os terceiros seriam os locais de lazer, onde as pessoas poderiam efetivar relações sociais, que serviriam posteriormente para o nascimento das comunidades. Segundo ele, na sociedade americana, a modernidade havia trazido a falta de tempo e a violência, barreiras que impediriam as pessoas de freqüentar os terceiros lugares como deveriam. Assim, de acordo com HAMMAN, as possibilidades comunicativas da Internet teriam sido utilizadas para suprir esta falta de terceiros lugares reais substituindo-os por terceiros lugares virtuais.

[9] Referência ao filme MATRIX, de Larry e Andy Wachowsky, com Keanu Reeves.

 

©2000 Raquel Recuero – Este artigo pode ser reproduzido parcialmente, desde que citada a fonte a autora.