Então. Hoje, depois de 10 anos, acabei de ler Sandman.
Nunca vou me esquecer de um artigo, de alguma revista científica de comunicação, que fazia análises semióticas de Sandman #1. Tinha até uma explicação para cada um dos ingredientes que Roderick Burgess (que, sublinhava o artigo, já era burguês no nome) usa na poção que aprisiona Morpheus, em 1916. A poção, e a história, construiam uma metáfora para o século XX: a moeda, a faca, a garra, a pena da asa de um anjo, tudo significava um prenúncio do terror que o novo século traria para desafiar o ideal da modernidade.
Acho que Gaiman inventou os ingredientes que soassem melhor e não havia metáfora alguma. Quando Sandman surgiu, era um veículo para ressuscitar os quadrinhos de terror que a DC tinha nos anos 60 e 70, pop e cheio de imaginação. A idéia de virar algo "sério" e "literário" apareceu depois.
De qualquer forma, o tempo que Morpheus fica aprisionado por Burgess, de 1916 a 1988, é bastante próximo do que Eric Hobsbawn viria a chamar de "breve século XX". Coincidência bem interessante.
Mas, voltando, Gaiman só pegou o ângulo "sério" depois de umas oito edições. Resolveu puxar tudo que leu durante a vida (Gaiman provavelmente aprendeu a ler aos seis meses, devorou o cânone ocidental até os três e aos oito já podia citar toda a história da literatura em língua inglesa), inventou a associação genial entre os sonhos e as histórias (no sentido de ficções) e resolveu que Sandman devia ser sobre isso. É aí que começa a descoberta crítica da obra, que desemboca na citação do Peter Straub: "If this isn't literature, nothing is."
"A Dream of a Thousand Cats", Sandman 18, é o exemplo mais óbvio: gatos de rua reunem-se, em assembléia, para lembrar que houve um tempo em que eles eram os donos dos humanos, e que um dia os humanos uniram-se e sonharam juntos um mundo em que eles eram os donos dos gatos - como é até hoje. Um gato chefe proclama que todos gatos devem sonhar, juntos, o retorno daquela antiga era. O plano não dá certo: vá conseguir que mil gatos se organizem para fazer a mesma coisa.
O poder das histórias é uma espécie de trama paralela de cada livro da série. "World's End", o sétimo, leva isso ao extremo: contos como perspectivas em abismo; histórias dentro de histórias dentro de histórias dentro de histórias.
Ao final da série, Gaiman já está numa versão "meta" disto, utilizando Shakespeare como personagem para explicar o poder do escritor em propagar suas idéias - ou sonhos - através dos séculos. Sandman acaba justamente aí. E Gaiman nunca mais conseguiu escrever algo tão complexo, inteligente e bom. Existe alguma ironia nisso.
hahaha, eu acho que eu sei qual artigo era esse :P
Ok, até achei um resumo dele na Internet. Você não estava envolvida, né, Suely? O artigo é bom, e as "interpretações" que ele faz são ótimas. Só acho que ele viu coisa demais onde não tinha nada.
Mas senti que tu sabe mais sobre o artigo. Conta aÃ. :)
acho que eu li praticamente todos os livros do gaiman e nenhum deles parece ter sido escrito pelo mesmo cara que fazia sandman. triste isso...
"nunca mais conseguiu escrever algo tão complexo, inteligente e bom"
Mas conseguiu escrever umas coisas tão chatas quanto. Se isso não é ser um autor, nada mais é.