Vida S.A.

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Dois livros que você não deve ler se acredita na frase "ignorância é uma bênção": A Cabeça do Brasileiro, do Alberto Carlos Almeida, e Life Inc., do Douglas Rushkoff. Sério, mantenha-se à distância.

Para mim, foram - e estão sendo, mesmo após acabar de ler - epifanias. Sabe quando alguém repete algum dado ou alguma história para você pela enésima vez, mas de repente vem de um jeito que te puxa pelos cabelos até te levantar do chão? Eu nasci e sempre vivi no Brasil que o Almeida pesquisou, e faz dez anos que estou lendo Naomi Kleins, Adbusters e Debords da vida explicando o Sistema - gente que o Rushkoff retoma no livro. Mas eles deram algum jeito de revoltar meu estômago com o jeito como falaram desses problemas.

A Cabeça do Brasileiro: 53% dos brasileiros com ensino superior concorda com a frase "Cada um deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público". 47% dos mesmos concordam com "Deus decide o destino, mas as pessoas podem mudá-lo um pouco". 60% confia mais na família do que nos amigos. 74% são contra homossexualismo feminino.

Isso para ficar só na parcela com ensino superior, 12% segundo o livro. A situação piora quanto mais diminui a escolaridade.

Ok, se você não morou em Marte (ou na Suíça) nos últimos 500 anos, percebe isso em qualquer conversa, no instante em que sair para a rua. Não é uma pesquisa quantitativa que vai te explicar o Brasil. Mas eu acho que gostava de viver na ilusão de que as pessoas na minha volta - eu tenho mestrado, meus amigos têm mestrado e doutorado, todo meu trabalho é intelectual (e a maior parte em casa), compro gibi na Amazon, rio da ironia do John Stewart e reclamo da vida em um blog; impossível negar que sou elite e vivo entre uma elite - seriam um pouco menos conservadoras e menos neoliberais.

Ouvir que 3 entre cada 4 pessoas dessa elite acham uma mulher gostar de uma mulher um descalabro é uma epifania (devem ser as mesmas pessoas que acham que Brüno é um filme que "exagerou").

Por que isso tudo me interessa? Porque todos os meus trabalhos só funcionam se eu mentalizar essa gente como público. Os alunos para quem eu preparo minhas aulas pensam assim. Os leitores para quem eu escrevo notícias, colunas, blogs e etc. pensam assim. Se algum dia eu voltar a fazer redação publicitária diariamente, as pessoas para quem eu escrever serão as que pensam assim (ou pior). Claro, talvez seja possível mudar umas cabeças com o que eu faço. Mas se as próprias pessoas à minha volta não fazem a mesma coisa, não consigo imaginar uma transformação verdadeira.

O argumento do livro do Rushkoff é mais global. Surgiu, diz o autor, quando ele foi assaltado na porta de casa, na noite de natal. Ao avisar os vizinhos do caso num fórum de discussão - tentando alertar o pessoal para um ladrão rondando a vizinhança -, ele foi... incensado. "Se você reportar isso à polícia, meu imóvel vai desvalorizar", disseram vários vizinhos.

É um exemplo quase alegórico do pensamento neoliberal - que não é só um conjunto de políticas econômicas, mas a forma como a gente vive hoje. Rushkoff vai descascando a cebola ao longo do livro, partindo destes exemplos contemporâneos nas relações de convívio e trabalho; passa o nível do discurso "corporações são só máquinas de fazer dinheiro"; passa o nível dos governos fragilizados; passa o nível da origem do capitalismo na insurreição burguesa e chega ao grande e central problema: o sistema de trocas que a gente criou, baseado no dinheiro, é insustentável.

Sim, o dinheiro, a representação das nossas posses em moedas, notinhas, cheques e pixels no caixa automático. Sim, existem outros sistemas.

Quase tudo que eu pensava sobre ativismo veio abaixo em dois parágrafos do Rushkoff. Para ele, não existe outra solução que não a livre cooperação entre as pessoas mudando as coisas de baixo para cima (nada de ONGs, fundações milionárias nem marketing institucional). Dá para respirar quando ele explica que existem bons exemplos acontencendo agora no mundo.

Um dos momentos chave do livro é quando ele explica a competição segundo a Teoria dos Jogos dos John Nash (aquele do Uma Mente Brilhante). Nash e colegas quiseram mostrar a competição natural no ser humano usando as secretárias de um órgão público como exemplo. Começaram um joguinho com elas, sem avisá-las. Quando as secretárias começaram a cooperar entre si, ao invés de competir, Nash e companhia jogaram os dados fora e foram fazer outra experiência até provar a tal da competição natural. Ele ganhou um Nobel e sua teoria foi adotada por empresas, governos e instituições internacionais, dominando dos anos 60 para cá. O Sistema tem um bug anti-humano.

(Essa história, aliás, o Rushkoff meio que rouba de um documentário brilhante chamado The Trap, do Adam Curtis - que tem inclusive entrevistas do John Nash reconhecendo a cagada que cagou a ideologia mundial.)

Enfim, essas coisas têm zunido pela minha cabeça nas últimas semanas. Achei que estava na hora de colocar em algum lugar. Não que elas venham a parar de zunir, porque mesmo com algumas possibilidades de mudança, elas continuam a exceção da exceção. E eu ainda moro no Brasil. Como mudar de país (ainda), nem de planeta, não é opção, estou pensando seriamente em mudar de profissão.

P.S.: Tudo isso, claro, pode ser uma reação alérgica ao Sarneygate e ao Dado AlgumaCoisa ter ganho um milhão de reais.

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Mudar de país não adianta (já tentei), todo país tem seus problemas. Vais te mudar de um país de pessoas ignorantes, e exploradas, para um país que vive às custas da exploração de outros países, onde as pessoas jogam fora comida e outros recursos suficientes para acabar com as desigualdades.

O que precisamos é mudar o país em que vivemos e isso é feito no dia-a-dia. Temos que criar nossas redes de relações, grupos de afinidade e começar a construir o mundo em que queremos viver. Sem colocarmos nossas esperanças no "fim da corrupção" dentro desse sistema, pois isso não vai acontecer, onde há centralização de poder há corrupção.

O Marcelo (e o Felix Guatari) estão absolutamente certos: a gente só vai mudar a realidade a partir de micro-revoluções diárias. Só estas pequenas modificações na nossa sensibilidade, inteligência e desejo vão ser mudança "de fato".

Érico,

Já devo ter te indicado o Zeitgeist Addendum. Acho que não chega ao nível do Rushkoff, pelo que você disse do livro, mas toca fundo no problema do sistema monetário. E também sugere algo bem interessante sobre a forma como mantemos as instituições políticas. No final o vídeo apresenta uma espécie de campanha, muito importante pra quem pesquisa ativismo. E já que você balançou, tá pensando em mudanças, o Addendum vai ser mais interessante ainda.

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This page contains a single entry by Érico Assis published on ágúst 26, 2009 6:43 EH.

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